Para Inspirar

Emar Batalha em “Quero devolver ao mundo o que o mundo me deu”

Conheça a história de como a resiliência trouxe a vitória, na décima quarta temporada do Podcast Plenae.

17 de Dezembro de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:

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Emar Batalha: O Instituto Alimentando o Bem existe por causa da minha história de vida. Eu sei o que é passar fome. Eu sei o que é sofrer violência dentro de casa. Eu sei o que é esperar por uma oportunidade. A minha trajetória começou a ser esculpida lá atrás. Se eu não tivesse vivido o que eu vivi, acho que hoje eu não estaria fazendo filantropia.  


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Geyze Diniz: Batalha não está apenas no sobrenome da designer de joias. Emar Batalha lutou muito para ir atrás da vida que sempre quis e hoje busca retribuir a ajuda que recebeu durante a sua trajetória, principalmente através do Instituto Alimentando o Bem, que fundou na pandemia e que se dedica na maior parte do seu tempo para ajudar outras mulheres a terem sua independência. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se. 


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Emar Batalha: Meus pais se conheceram quando minha mãe tinha 14 anos de idade e o meu pai mais que o dobro da idade dela. Ela morava em Colatina, no interior do Espírito Santo, e trabalhava num posto de gasolina. Ele, fazendeiro na Bahia. Meus avós maternos eram analfabetos e nunca se preocuparam com a educação dos filhos. Então, aquele relacionamento foi visto como um meio pra família sair da pobreza.


O meu pai comprou duas casas, uma colada na outra. Em uma morava minha mãe, eu e meu irmão. Na casa vizinha, morava minha avó com os meus tios. Só que o meu pai levava uma vida dupla. Ele era casado. Todo mundo sabia da existência da minha mãe, inclusive a esposa dele. Em algum momento, ele se separou de corpos dessa primeira mulher, mas continuou casado legalmente.


O meu pai era uma pessoa muito complexa, de gênio difícil e caráter duvidoso. Com 27 anos, a minha mãe cansou de ser a outra e de viver naquela relação abusiva. Apesar de ter sido amante do meu pai por muitos anos, ela tinha os mesmos direitos de esposa. Então, ela entrou com um processo de separação e foi aproveitar a vida.  


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Meu pai não aceitou o término do relacionamento. Ele, que não bebia, começou a beber. O comportamento dele mudou e ele se tornou um homem muito agressivo. Um dia, quando eu tinha apenas 11 anos, eu estava sentada na sala de casa e ele entrou. A minha avó percebeu que ele estava alterado e falou: “Vou preparar um café amargo”. Pra ela, que teve um marido alcoólatra, café amargo curava qualquer bebedeira.  


Quando ela veio com o copo de café, o meu pai sacou uma arma e mirou na minha mãe. A minha mãe tinha apenas 1 metro e meio de altura, mas era muito esperta. Ela enfiou o dedo no gatilho e o tiro bateu na parede. Começou uma luta corporal, e a minha tia tirou uma faca que meu pai tinha na cintura. A gente gritou, um vizinho veio e conseguiu pegar o revólver do meu pai.  


A minha mãe nunca registrou queixa, porque achou que foi um momento de loucura dele. Meses depois, ela viajou pra fazenda pra encontrar meu pai. Naquela época, não tinha celular, a comunicação era diferente. Dez dias depois o meu pai ligou em casa perguntando por ela. A minha avó falou: “Como assim? Ela foi te encontrar e não apareceu até hoje”.


Ele respondeu que tinha dado o dinheiro da pensão e que ela tinha ido embora. Mas dois dias após este telefonema, um capataz da fazenda apareceu lá em casa com o dinheiro. Eu me lembro até hoje, eu estava na sala. A minha avó pegou o telefone, ligou pra advogada da minha mãe e falou: “Pode ir atrás dele, porque ele matou ela”. 


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Meu pai foi preso, mas ficou pouco tempo na cadeia. Quando ele saiu, vendeu tudo que tinha e foi embora pro Pará. A gente ficou abandonado à própria sorte e a fome chegou. Na maioria das vezes, a única refeição que tínhamos era na escola. Em casa, minha avó misturava macarrão com farinha pra render e garantir a refeição de todos os netos. Foi uma época muito dura. 


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Aos 14 anos, eu comecei a trabalhar de babá. Os meus tios, que eram um pouco mais velhos, também saíram pra trabalhar. As coisas começaram a melhorar, mas com muita dificuldade. Na adolescência, eu me aproximei da outra família do meu pai, que morava em Vitória.


Hoje eu tenho plena consciência de que eu via neles uma tábua de salvação. A primeira mulher do meu pai, Dona Rosa, teve três filhos homens. O sonho dela era ser mãe de uma menina. Durante o processo de separação dos meus pais, antes da tragédia, o meu pai me levou para morar com a Dona Rosa, escondido da minha mãe.  


Eu fui recebida de braços abertos e fiquei um mês e pouquinho em Vitória. Eu estudei numa escola melhor, eu entrei num shopping center pela primeira vez e descobri o que era um prédio com elevador, com porteiro e piscina. Essas poucas semanas definiram o que eu sou hoje. Aquela era a vida que eu queria, a vida que eu buscaria pra mim. E eu sabia que o primeiro passo que eu deveria dar era através da educação.  


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Fiz um curso técnico de contabilidade e passei no vestibular de ciências contábeis. Meus irmãos de Vitória me ajudaram a pagar as primeiras parcelas da faculdade e eu consegui um ótimo emprego numa indústria de celulose na Bahia. Pra conciliar o trabalho com os estudos, eu viajava quase 400 quilômetros toda semana. Eu ia de ônibus e pra voltar pegava carona na estrada, pois só assim chegaria a tempo.  


Nessa época, eu tinha uma cunhada que vendia joias de prata. Ela me convidou pra vender as peças, em troca de uma comissão. Eu, que sempre fui muito comunicativa, comecei a oferecer as joias dentro da empresa e da faculdade. Em seis meses, percebi que esse negócio era mais rentável do que o meu emprego, e pedi demissão. 


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Eu fui vender as peças de porta em porta, em Colatina. Eu pesava 48 quilos e a minha bolsa pesava 30. Com as joias, eu paguei a minha faculdade e as contas da casa da minha avó. Aos 24 anos, eu engravidei do meu namorado, que era o gatão da cidade. Sabe aquela história, né, do pai rico, filho nobre e neto pobre? Ele era o neto pobre. Era um namoro doentio, marcado por brigas e pelo alcoolismo dele. Só mais tarde, depois de muita terapia, eu entendi que eu estava tentando repetir a trajetória dos meus pais. 


Aos 29 anos, eu não aguentei mais aquele relacionamento abusivo e me separei. Eu já tinha loja em Colatina, e decidi refazer a minha vida em Vitória. Na capital, eu comecei a entender que eu poderia ser mais do que uma vendedora. Eu poderia ser uma designer de joias. Eu já sabia muito sobre o mercado e conhecia as fábricas e os ourives. Eu fiz alguns cursos técnicos de desenho e passei a comprar revistas importadas. As minhas criações fizeram muito sucesso. 


Um dia, a Preta Gil foi pra Vitória fazer um show. A gente fechou uma permuta em joias e ela apareceu em um evento que eu organizei pras clientes. Eu contei pra Preta a minha história de vida e ela me encorajou a ir pro Rio de Janeiro. Com a ajuda dela, eu conheci vários artistas. As minhas joias começaram a aparecer na mídia e nas novelas da Globo. Essas eram as maiores vitrines que existiam, antes das redes sociais. Meu negócio decolou. Eu abri uma loja em São Paulo e outras em Brasília e Salvador.  


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Eu também consegui me refazer do ponto de vista pessoal. Me mudei pra São Paulo, me casei com um homem maravilhoso e tive uma linda filha. A minha vida estava ótima, até que chegou março de 2020.  


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Eu, meu marido e minha filha pegamos Covid bem no comecinho da pandemia. A gente está entre os primeiros 100 casos da doença no Brasil. Depois do período de isolamento, eu viajei pro Guarujá, pra minha casa da praia. Quando cheguei, a minha cozinheira me contou sobre um deslizamento de terra em uma comunidade carente pertinho da minha casa. Mais de 500 pessoas ficaram sem teto e a pandemia estava agravando muito essa situação. Tinha muita gente passando fome.  


Ela sugeriu que a gente fizesse marmitas e eu topei. Como eu já tinha tido covid, fiquei na linha de frente e fui distribuir numa igreja. No primeiro dia, a gente preparou 30 marmitas e apareceram 80 pessoas. No segundo dia, a gente fez 80 refeições e vieram 120 pessoas. Aí, a gente preparou 120 e apareceram 170. Até que eu montei uma cozinha industrial no Perequê, um bairro do Guarujá. Comecei a pedir doações pela internet e, durante a pandemia, a gente chegou a distribuir quase 30 mil marmitas.  


Dessa linda iniciativa acabou nascendo uma ONG: o Instituto Alimentando o Bem, que se dedica ao desenvolvimento territorial através das mulheres. A gente entende que a mulher é o pilar da família e quando bem estruturada consegue apoiar todas as pessoas do seu núcleo. 


O instituto tem várias frentes. A principal delas é a capacitação das mulheres pra que elas possam ter renda assumindo assim o protagonismo de suas vidas. A gente tem uma fábrica de cerâmica, uma de chocolate, uma de costura e uma de vela. Além disso, a gente tem um projeto de moradia pra resolver o problema de quem vive em lugares de risco. O Instituto já realocou 53 famílias que viviam em palafitas, em uma área de mangue e vai realocar mais 190 famílias.  


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Hoje, eu passo 70% do meu tempo batendo na porta dos outros.  


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Mas agora, em vez de oferecer joias de prata, como eu fazia lá em Colatina, eu peço dinheiro para ajudar outras pessoas. Eu ainda trabalho como designer, é minha profissão e minha arte. Mas, nesta área eu já alcancei todos os meus objetivos. O meu grande amor agora é o Instituto.


Eu sinto que eu tenho duas missões com a ONG. Uma é devolver ao mundo o que o mundo me deu. Ao longo da vida, eu recebi muita ajuda de mulheres, e agora eu preciso dar as mesmas oportunidades pra outras mulheres que passam por dificuldades como eu passei. A segunda missão é conscientizar as mulheres que elas precisam olhar pra outras mulheres.


A gente pode começar a fazer isso no nosso entorno. As classes mais favorecidas têm funcionárias em casa. Quanto tempo essa pessoa gasta para chegar ao trabalho? Quem cuida dos filhos dela enquanto ela está fora? São perguntas que a gente tem que fazer e tentar ajudar. O dinheiro é uma ferramenta pra dar prazer e conforto. Eu vendo joias. Quem sou eu pra julgar como as pessoas gastam? Eu me considero capitalista, mas procuro ser uma capitalista consciente. 


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Eu sempre fui ligada à filantropia. Mas, quando eu olho o que eu tinha e a necessidade do mundo, eu vejo que o que eu fazia no passado não era nada. A filantropia, pra gente, tá ligada ao que sobra, ao que não fará diferença para mim. E não é assim. A pandemia me mostrou que não adianta a gente ficar esperando ter tempo e dinheiro sobrando pra ajudar o próximo. A hora de fazer é agora. 


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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae. 


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Para Inspirar

Fernanda Fabris em "As crianças não precisam ser salvas. Elas precisam ser amadas"

Na décima segunda temporada do Podcast Plenae, mergulhe na história emocionante de maternidade de Fernanda Fabris.

4 de Julho de 2023



Leia a transcrição completa do episódio abaixo:


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Fernanda Fabris: Eu acreditava que a criança tinha um papel ativo em fazer uma adoção dar certo. Se ela tivesse uma personalidade fácil, então rolava. Se ela fosse difícil, não rolava. Hoje, eu vejo que é o contrário. Quem tem que fazer dar certo é o pai e a mãe, não o filho. 

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Geyze Diniz: Fernanda e seu marido, Maurício, tentaram engravidar por 11 anos. Depois de muita frustração e expectativas, Fernanda retomou seu desejo antigo de adotar. Hoje, o casal tem 5 filhos. Conheça essa história de amor, persistência e destino da família Fabris. Eu sou Geyze Diniz e esse é o Podcast Plenae. Ouça e reconecte-se.

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Fernanda Fabris: A ideia da adoção nasceu no meu coração quando eu tinha 13 anos. A minha tia paterna levava crianças e adolescentes que moravam em abrigos pra passar as festas de fim de ano com a gente. Teve uma garota específica que me marcou muito. Eu não lembro o nome dela, mas a gente tinha mais ou menos a mesma idade. Eu me recordo que olhei pra ela e pensei: “Por que eu tenho uma família e ela não?” 

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Eu me casei cedo pros padrões atuais, aos 18 anos. Quando meu marido me pediu em casamento, eu perguntei se ele toparia adotar uma criança. Eu esperava uma resposta negativa, mas ele aceitou. Então, a gente combinou que primeiro eu ficaria grávida. Quando o nosso filho tivesse uns 12 anos, nós adotaríamos um adolescente ou pré-adolescente. Eu nunca tive vontade de adotar um bebê.

Antes de completar um ano de casada, eu já quis engravidar. Só que os anos foram passando… e nada. Pior do que lidar com a minha frustração, era aturar a expectativa dos outros. Muita gente perguntava: “Quando vem o filho? Cadê o bebê?”. E cada vez que alguém recomendava um médico novo, eu ia. A maior parte dos profissionais nem pedia um exame. O discurso era: “Você é jovem, vai conseguir ficar grávida”.

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Foram 11 anos sem usar nenhum método contraceptivo. Nesse período, eu tive três depressões. Eu estava quase entrando na quarta quando eu fiz um tratamento não-invasivo para estimular a ovulação. E aí o ginecologista me falou: “Olha, eu acho que você deveria fazer uma fertilização in vitro”. Ouvir essa frase foi uma libertação, porque tirou das minhas costas a obrigação de engravidar naturalmente. 

Só que eu não queria fazer a fertilização. Eu decidi passar por um período sem pensar em maternidade, para curar o meu estado emocional. Viver o luto por não poder gerar um bebê me permitiu entender o que eu queria da maternidade. Eu comecei a prestar atenção em mim e lembrei do meu desejo de adotar. Por que eu fiquei 11 anos tentando engravidar? Era pra satisfazer a minha vontade ou era a vontade do outro? E aí eu me abri de verdade pra adoção. 

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Um dia, eu estava no trabalho e joguei no Google: “documentos para adotar”. No topo da página, apareceu um site chamado “Adote um Boa Noite”, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Tinha um monte de fotos de crianças. E eu fui vendo as imagens, até parar na penúltima delas. No mesmo instante, eu disse: “Meus filhos!”. Uma colega que estava do meu lado falou: “Você tá louca?” E eu respondi: “Não, vem ver meus filhos”. Tirei um 'print' da tela e mandei pro meu esposo. Ele ficou muito bravo. Quem quer adotar quatro crianças de uma vez? 

[trilha sonora]

Eu confesso que eu também achei loucura. Mas, os quatro não saíam da minha cabeça. Eu pus aquela foto de fundo de tela do meu celular e comecei a sonhar. Eu só sabia o nome e a idade deles: Flávio, de 11 anos, Flávia, de 9, Fabrício, de 6, e Artur, de 3 anos. Se eu ia numa loja, falava: “O Flávio vai ficar bonito com essa roupa; a Flávia vai ficar uma graça com essa”. O meu marido me podava: “Pode parar, não vem que não tem. Nós vamos adotar até duas crianças”. Eu fingi que aceitei a condição dele e a gente entrou no processo de habilitação. 

[trilha sonora]

Eu cacei na internet o telefone da Vara da Infância responsável pelos quatro e ficava ligando lá. O primeiro telefonema foi o mais engraçado. Alguém atendeu “alô” e eu disse na hora : “Alô, não separe os meus filhos, eu estou me habilitando”. A pessoa respondeu assim: “Que filhos?” É claro que a Vara não me deu moral. Me acharam maluca, porque eu liguei muitas vezes lá.

Durante o curso preparatório, uma mãe contou que adotou três meninas. Detalhe: sozinha e sendo que uma das crianças tinha uma necessidade específica. No final da palestra, um rapaz perguntou: “Como você faz para oferecer escola pra todas?” Aí ela, muito educada, disse: “As minhas filhas não estudam na melhor escola. Elas não têm iPhone. Elas não têm tênis do ano. Mas elas têm amor e têm um lar, é disso que uma criança precisa”.

Eu percebi que o meu marido se emocionou, mas fiquei quietinha. Quando a gente entrou no carro, ele olhou pra minha cara e falou: “Você é a mulher mais louca que eu já vi na minha vida, mas eu vou te apoiar”.

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Quatro meses depois que eu vi a foto das crianças na internet, a gente se conheceu pessoalmente. O encontro aconteceu num sábado. O Fabrício, o de 6 anos, me perguntou: “Você vai ser minha mãe?”. Eu respondi: “Eu acho que sim. Você quer?”. Ele falou: “Relaxa, você já é minha mãe, tá tudo bem”. Eu fiquei assustada, porque tinham me dito que primeiro eu seria chamada de “tia”.

A Flávia, de 9, repreendeu o irmão: “Não chama ela de mãe. Ela não é sua mãe”. O Flávio, de 11 anos, ficou o tempo todo muito tímido, nem interagiu direito. Ele tinha medo de ser rejeitado, ele achava que eu ia preferir os irmãos menores e mais fofinhos. Eu imaginava que iria amá-los imediatamente.

Mas, quando o sonho se tornou realidade, eu fiquei meio sem entender o que estava acontecendo. Por um lado, eu estava encantada. Achei lindo ser chamada de mãe. Por outro, me bateu um pouco de medo, uma dúvida de: “será que eu vou dar conta?”. 

[trilha sonora]

Na segunda-feira, a Vara da Infância me ligou às 10h da manhã, pra saber se a gente queria continuar a fase de aproximação. Eu, toda feliz, respondi: “Claro, eles são meus filhos, me chamaram de mãe”. A assistente social, que já tinha visto aquele filme, me alertou: “Vai com calma, não é bem assim”.

Naquele mesmo dia, o meu marido foi demitido. Nós perdemos 70% da nossa renda. Eu nunca tinha ficado sem convênio médico. E agora, ficaria sem convênio e com quatro crianças. A gente passou bastante perrengue, mas não cogitou desistir da adoção. 

[trilha sonora]


Seis semanas depois do nosso primeiro encontro, o juiz liberou a vinda das crianças pra casa. A lua de mel que a gente viveu na fase da aproximação acabou assim que eles deixaram o abrigo. No primeiro dia, a Flávia já colocou em cima da cama os ursos de pelúcia e uma Bíblia.

Ela olhou para mim e falou: “Isso daqui quem me deu foi minha mãe. Não mexa”. O Fabrício não dormiu e teve micro convulsões, por estresse. O Artur, o pequeninho, não deixava eu me aproximar dele. Na hora do banho, ele olhava para mim e falava: “Eu não ‘teio’ você”.

O único que nunca me rejeitou foi o Flávio. Ele já tinha aceitado que não ia voltar pra família de origem e queria ser adotado. Em três meses a gente já estava vinculado. Quando eu falo de vínculo, significa que eu já o via como meu filho, não imaginava mais a vida sem ele. Depois esse vínculo então foi fortalecido através de um relacionamento.

O segundo com quem eu me vinculei foi o Artur. Depois de quatro meses me rejeitando, eu falei: “Não tô nem aí. Vem aqui pro meu colo”. E eu venci pela insistência. Ele foi o primeiro a dizer que me amava. Só que com o Fabrício, o primeiro que me chamou de mãe, não me dava bem de jeito nenhum. A Flávia, então, passou um ano e meio pedindo pra voltar para o abrigo. Ela olhava para mim e falava: “Você não é minha mãe. Não adianta, você pode fazer o que for, eu nunca vou ser sua filha”.

Por mais que eu tentasse melhorar as coisas em casa, eu não conseguia. Virou um ambiente de guerra, porque eles se uniam contra mim. E pra piorar, a pandemia começou três meses depois que eles vieram morar com a gente. O Maurício, que tava começando a trabalhar, ficou totalmente sem renda de novo.

Eu não conseguia mais me dedicar aos estudos, porque as crianças consumiam 100% do meu tempo. 
Eu comecei a pedir ajuda. Quando eu procurava quem sabia um pouquinho sobre adoção, eu ouvia: “Tem que ter paciência, vai passar”. Mas, ninguém me explicava o que estava acontecendo. Por que tanta rejeição?

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Eu, como pesquisadora, ao invés de ficar só choramingando, resolvi estudar por conta própria. Primeiro, eu fiquei horas e horas lendo sobre desenvolvimento infantil. Aí eu entendi o que era esperado em cada idade. Então ok, isso ou aquilo não tinha a ver com a adoção, era da idade. Depois, eu fui buscar na literatura sobre crianças acolhidas. Eu descobri que elas não se amavam, que tinham baixa autoestima. E eu, curiosa, fui pesquisar porque isso acontecia.

Na neurologia, eu aprendi que a criança que sofreu acolhimento tem a região da amígdala cerebral mais estimulada. A amígdala é a estrutura ligada às emoções. Por outro lado, o córtex cerebral delas, que é o sistema que representa a razão, é menor. Toda vez que essas crianças se veem numa situação de perigo, elas reagem. E não adianta bater de frente. Não adianta gritar, que é justamente o que nós, pais, fazemos.

A ciência mostra que, quando a gente vai construindo o vínculo afetivo, a pessoa passa por um processo de neuroplasticidade. Ela começa a pensar e agir de forma consciente. Com a psicologia, eu entendi que a rejeição era um mecanismo de defesa inconsciente das crianças.

Elas pensam assim: “Se eu gostar dela e ela me levar de volta para o abrigo, eu vou sofrer. Então, eu rejeito ela, assim ela não gosta de mim, eu também não gosto dela e eu não sofro”. Quando eu comecei a aplicar esses conhecimentos dentro da minha casa, automaticamente o ambiente foi ficando mais leve. 

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Na terapia, eu entendi que o meu desconforto com o Fabrício dizia respeito a mim, não a ele. Ele chegou em casa muito carente. Queria estar no meu colo 24 horas. Só que eu não expresso tanto meu amor pelo toque. Eu demonstro o meu afeto por atos de serviço e tempo de qualidade. E aí o que ele fez? Ele se afastou de mim, porque entendeu como rejeição.

Eu, por outro lado, achava ele chato. Aí eu lembrei que eu fui uma criança carente. O choro dele lembrava o meu choro não acolhido. Depois que eu tive essa sacada, eu enxerguei o quão incrível ele era. Em um ano, a gente estava vinculado. 
A mais complicada foi a Flávia. Quando ela me via chorando, ela gargalhava.

Eu lembro que eu cheguei na psiquiatra e disse: “Minha filha é uma sociopata”. Eu falei desse jeito. Era uma fase em que eu estava dormindo com a porta trancada, por medo. E no processo terapêutico, eu compreendi que a gargalhada da Flávia não era sobre mim, mas sobre ela. Se ela não me ouvisse chorando, ela não sentia dor.

Faltavam dois dias pra sair a sentença de guarda e a gente ainda não estava vinculada. Pela última vez, ela pediu pra voltar pro abrigo. E eu respondi: “Eu sou a sua mãe, você querendo ou não. Então, se você não tá feliz aqui, o que eu recomendo é que você estude, tenha uma profissão e, quando você for maior de idade, tu toma o teu rumo”.

Três dias depois da sentença, ela me chamou de mãe. Eu me arrepiei e soube que a gente tinha se vinculado. 
Hoje, a Flávia é uma menina de um coração imenso, doce, minha melhor amiga. A gente se conhece só pelo olhar.

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Eu conversei com ela e a gente decidiu contar a nossa história no Instagram. A minha ideia era ajudar outras pessoas que tivessem passando pela mesma situação. Tem pais que desistem da adoção, quando a criança pede pra voltar pro abrigo. O perfil bombou. Em menos de 6 meses, a gente tinha 360 mil seguidores.

Eu comecei a divulgar instituições que acolhem crianças. Em troca, eu pedia pra ter contato com os abrigados. Foi numa dessas vivências que a gente conheceu a Naty. Ela tinha 16 anos e uma fala muito triste. A gente decidiu apadrinhá-la e ela começou a frequentar a nossa casa.

No início, ela fugia de mim. E eu pensava: “Caraca, eu só tô apadrinhando e vou ter que viver essa rejeição também? Que saco!” Mas, eu sou muito teimosa. Quando ela não vinha, eu aparecia no abrigo ou na escola. Fui conquistando a confiança dela e, não sei explicar, mas ela parecia parte da nossa família.

Um dia, o Maurício parou na minha frente e falou bem baixinho: “E se a gente adotasse a Naty?”. Todo mundo adorou a ideia, inclusive ela. Quando nós fomos buscá-la, eu falei: “Oi, filha”. Aí ela respondeu: “Oi, mãe”. Foi natural desse jeito.

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Nesse processo, eu aprendi que não adianta a gente querer mudar o mundo da criança rapidamente. O meu papel é ajudar os meus filhos a ressignificarem o que eles viveram e continuarem escrevendo a própria história. Eu compreendi a importância da família de origem.

A adoção, ela não vem com uma borracha mágica. A gente tem que ter muito respeito por essa família, para que os nossos filhos se aceitem e se livrem da culpa que eles carregam. Quando a gente respeita os pais biológicos, a gente ensina as crianças que elas têm que se respeitar, que elas são dignas de amor e de afeto.

Todos os dias, eu vejo famílias que entram no processo adotivo com a intenção de fazer uma caridade. O problema é que, com essa mentalidade, esses adultos vão esperar um senso de gratidão em troca. E a criança e o adolescente não tem nem maturidade cerebral para ser grato. É um erro pensar que as crianças precisam ser salvas. Elas só precisam ter pais e mães. Elas precisam de amor.

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Geyze Diniz: Nossas histórias não acabam por aqui. Confira mais dos nossos conteúdos em plenae.com e em nosso perfil no Instagram @portalplenae.

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